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Publicado em 29 de março de 2021
Julia Blinder
Vindo da Argentina a contar contos no Brasil
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O carrinho verde
Aqui estou eu, na mesa, cheio de poeira e com a tinta meio rançosa, não entendo bem o que estou fazendo, nem por que me tiraram da caixa.
Parece que têm que tirar uma foto minha e eu com esse look.
Lembro-me do dia em que cheguei à vida do Luís, fui um presente da madrinha dele, ele ainda era uma criança bem novinha, mas quando rasgou o papel de embrulho e me viu, o seu sorriso foi o melhor que eu tinha visto em décadas. Sim, eu já era velho quando cheguei às suas mãos, o meu anterior dono era irmão da sua madrinha.
Com Luís éramos inseparáveis, mais de dez anos vivendo aventuras indescritíveis, cruzamos desertos infinitos, corremos corridas com dinossauros e dragões de cores vivas. Transportava vaqueiros, índios e até cavaleiros da Idade Média. Nunca me diverti tanto como com o Luís, aquele menino tinha imaginação, sinto muito a falta desses tempos, sinto falta dos olhos brilhantes e daquele sorriso cheio de guloseimas.
Esta manhã, enquanto falava com a locomotiva de lata, a caixa foi aberta e uma mão grande tirou-me dali, quando olhei para ver quem me puxava, vi-o, Luís, os seus olhos não perderam o brilhar, mas o seu sorriso já não está coberta com balas, está rodeado por uma espessa barba e, na realidade,
já não havia um grande sorriso, e sim um toque de nostalgia, tenho a certeza que se comoveu ao me ver.
E aqui estou eu, na mesa, e o Luís tentando tirar uma foto minha, a princípio não entendi bem o porquê.
Luís pega a câmera, e nesse momento aparece uma garotinha, com o mesmo sorriso de Luís, e os mesmos olhos brilhantes, e com uma voz bem estridente, pergunta:
-Papai, de quem é esse carro? Por que você tira uma foto dele? Eu posso segurá-lo?
E é nesse momento, quando Luís diz à sua filha que precisava da fotografia do objeto que ele mais amava, para fazer um trabalho no atelier de literatura, senti que o meu peito ia explodir de emoção. Aquele objeto era eu, embora já estivesse trancado naquela caixa por anos, o Luís ainda me amava, e lá eu olhei para ele, e vi de novo o pequeno Luís, aquele de olhos brilhantes e o sorriso rodeado de doces.