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JUAN VALERA
Publicado em 18 de fevereiro de 2021
Uma série sobre mentirosos, honestos e enganados
O cozinheiro do arcebispo
Nos bons velhos tempos, quando o arcebispado era próspero e poderoso,
houve em Toledo um arcebispo tão austero e penitente, que jejuava muitas vezes e quase sempre comia na vigília, e mais do que peixes, sementes e ervas.
Seu cozinheiro preparava para a refeição um modesto cozido de feijão com grão, com o qual aquele venerável e herbívoro servo de Deus se brindava e se deleitava, como se fosse com o prato mais suculento, requintado e caro. É verdade que o cozinheiro preparava o grão-de-bico e o feijão com tanta destreza que pareciam, graças ao tempero refinado, uma iguaria de muito mais estima e deleite.
Aconteceu, infelizmente, que o cozinheiro teve uma briga terrível com o mordomo. E como a corda quase sempre se corta na sua parte mais fina, o cozinheiro foi demitido.
Outro novo veio cozinhar para o arcebispo e ele teve que fazer o guisado de costume para a colação. Ele se esforçou muito no cozido, mas o arcebispo o achou tão detestável que mandou despedir o cozinheiro e obrigou o mordomo a pegar outro.
Vieram oito ou nove sucessivamente, mas nenhum acertou no tempero do caldo e todos tiveram que ir embora envergonhados, deixando a cozinha do arquiepiscopal.
Por fim, entrou um cozinheiro mais alerta e prudente, e teve a boa ideia de ir visitar o primeiro cozinheiro e implorar-lhe e pedir-lhe, pelo amor de Deus e de todos os santos do céu, que lhe explicasse como fazia a sopa do que o arcebispo tanto gostava.
O primeiro cozinheiro foi tão generoso que lhe confidenciou com lealdade e louvável franqueza o seu misterioso procedimento.
O novo cozinheiro seguiu exatamente as instruções de seu antecessor, temperou o guisado e mandou servir ao asceta Prelado.
Assim que o provou, saboreando-o com um deleite taciturno, exclamou com entusiasmo:
-Obrigado ao Altíssimo.
Por fim, encontramos outro cozinheiro que faz o guisado tão bom ou melhor que o antigo. É muito rico e muito saboroso. Deixe o cozinheiro vir aqui. Eu quero dar a ele um elogio bem merecido.
O cozinheiro chegou feliz. O arcebispo o recebeu com grande afabilidade e simplicidade, e colocou seu talento em alta.
Encorajado então, o artista, que também era um sujeito muito sincero, franco e escrupuloso, quis mostrar sua sinceridade e lealdade e provar que sua vestimenta moral estava à altura de seu saber e até mesmo à frente de suas habilidades culinárias.
Então o cozinheiro disse ao arcebispo:
- Excelência, apesar do profundo respeito que V. Exa. me inspira, atrevo-me a dizer-lhe, porque creio ser meu dever, que anterior-cozinheiro o estava a enganando e que não é justo que eu cometa a mesma falta. Não há grão-de-bico ou feijão neste guisado. É uma farsa. Nesse guisado há almôndegas de presunto e peito de frango, e rins de galinha e pedaços de rabadilhas de carneiro. Você vê V. Exa. que eles o traíram.